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A
ascensão da idiotice já havia sido percebida por Nelson Rodrigues
antes mesmo de os maiores idiotas tomarem o poder na América Latina. Muitas canalhices foram praticadas por eles para corromper as instituições
republicanas. Nesta semana, reuniram-se para prestigiar o cadáver do ditador Hugo Chávez, que será embalsamado e exposto à visitação na
Venezuela para sempre.
A
idiotice do coma andante imortalizada para que os idiotas de todo
o mundo a venerem! O texto “Os idiotas confessos”, escrito em
1968, de Nelson Rodrigues, traduz bem o que vem ocorrendo:
“Os
idiotas confessos
Nelson
Rodrigues
Antigamente,
o idiota era o idiota. Nenhum ser tão sem mistério e repito: —
tão cristalino. O sujeito o identificava, a olho nu, no meio de
milhões. E mais: — o primeiro a identificar-se como tal era o
próprio idiota. Não sei se me entendem. No passado, o marido era o
último a saber. Sabiam os vizinhos, os credores, os familiares, os
conhecidos e os desconhecidos. Só ele, marido, era obtusamente cego
para o óbvio ululante.
Sim,
o traído ia para as esquinas, botecos e retretas gabar a infiel: — 'Uma santa! Uma santa!'. Mas o tempo passou. Hoje, dá-se o
inverso. O primeiro a saber é o marido. Pode fingir-se de cego. Mas
sabe, eis a verdade, sabe. Lembro-me de um que sabia endereço, hora,
dia etc. etc.
Pois
o idiota era o primeiro a saber-se idiota. Não tinha nenhuma ilusão.
E uma das cenas mais fortes que vi, em toda a minha infância, foi a
de uma autoflagelação. Um vizinho berrava, atirando rútilas
patadas: — “Eu sou um quadrúpede!”. Nenhuma objeção. E,
então, insistia, heróico: — 'Sou um quadrúpede de 28 patas!'.
Não precisara beber para essa extroversão triunfal. Era um límpido,
translúcido idiota.
E o
imbecil como tal se comportava. Nascia numa família também de
imbecis. Nem os avós, nem os pais, nem os tios, eram piores ou
melhores. E, como todos eram idiotas, ninguém pensava. Tinha-se como
certo que só uma pequena e seletíssima elite podia pensar. A vida
política estava reservada aos 'melhores'. Só os 'melhores', repito,
só os 'melhores' ousavam o gesto político, o ato político, o
pensamento político, a decisão política, o crime político.
Por
saber-se idiota, o sujeito babava na gravata de humildade. Na rua,
deslizava, rente à parede, envergonhado da própria inépcia e da
própria burrice. Não passava do quarto ano primário. E quando
cruzava com um dos 'melhores', só faltava lamber-lhe as botas como
uma cadelinha amestrada. Nunca, nunca o idiota ousaria ler, aprender,
estudar, além de limites ferozes. No romance, ia até ao Maria, a
desgraçada.
Vejam
bem: — o imbecil não se envergonhava de o ser. Havia plena
acomodação entre ele e sua insignificância. E admitia que só os
'melhores' podem pensar, agir, decidir. Pois bem. O mundo foi assim,
até outro dia. Há coisa de três ou quatro anos, uma telefonista
aposentada me dizia: — 'Eu não tenho o intelectual muito
desenvolvido'. Não era queixa, era uma constatação. Santa senhora!
Foi talvez a última idiota confessa do nosso tempo.
De
repente, os idiotas descobriram que são em maior número. Sempre
foram em maior número e não percebiam o óbvio ululante. E mais
descobriram: — a vergonhosa inferioridade numérica dos 'melhores'.
Para um 'gênio', 800 mil, 1 milhão, 2 milhões, 3 milhões de
cretinos. E, certo dia, um idiota resolveu testar o poder numérico:
— trepou num caixote e fez um discurso. Logo se improvisou uma
multidão. O orador teve a solidariedade fulminante dos outros
idiotas. A multidão crescia como num pesadelo. Em quinze minutos,
mugia, ali, uma massa de meio milhão.
Se
o orador fosse Cristo, ou Buda, ou Maomé, não teria a audiência de
um vira-lata, de um gato vadio. Teríamos de ser cada um de nós um
pequeno Cristo, um pequeno Buda, um pequeno Maomé. Outrora, os
imbecis faziam platéia para os 'superiores'. Hoje, não. Hoje, só
há platéia para o idiota. É preciso ser idiota indubitável para
se ter emprego, salários, atuação, influência, amantes, carros,
jóias etc. etc.
Quanto
aos 'melhores', ou mudam, e imitam os cretinos, ou não sobrevivem. O
inglês Wells, que tinha, em todos os seus escritos, uma pose
profética, só não previu a 'invasão dos idiotas'. E, de fato,
eles explodem por toda parte: são professores, sociólogos, poetas,
magistrados, cineastas, industriais. O dinheiro, a fé, a ciência,
as artes, a tecnologia, a moral, tudo, tudo está nas mãos dos
patetas.
E,
então, os valores da vida começaram a apodrecer. Sim, estão
apodrecendo nas nossas barbas espantadíssimas. As hierarquias vão
ruindo como cúpulas de pauzinhos de fósforos. E nem precisamos
ampliar muito a nossa visão. Vamos fixar apenas o problema
religioso. A Igreja tem uma hierarquia de 2 mil anos. Tal hierarquia
precisa ser preservada ou a própria Igreja não dura mais quinze
minutos. No dia em que um coroinha começar a questionar o papa, ou
Jesus, ou Virgem Maria, será exatamente o fim.
É
o que está acontecendo. Nem se pense que a 'invasão dos idiotas' só
ocorreu no Brasil. Se fosse uma crise apenas brasileira, cada um de
nós podia resmungar: — 'Subdesenvolvimento' — e estaria
encerrada a questão. Mas é uma realidade mundial. Em que pese a
dessemelhança de idioma e paisagem, nada mais parecido com um idiota
do que outro idiota. Todos são gêmeos, estejam uns aqui, outros em
Cingapura.
Mas
eu falava de que mesmo? Ah, da Igreja. Um dia, ao voltar de Roma, o
dr. Alceu falou aos jornalistas. E atira, pela janela, 2 mil anos de
fé. É pensador, um alto espírito e, pior, uma grande voz católica.
Segundo ele, durante os vinte séculos, a Igreja não foi senão uma
lacaia das classes dominantes, uma lacaia dos privilégios mais
hediondos. Portanto, a Igreja é o próprio Cinismo, a própria
Iniqüidade, a própria Abjeção, a própria Bandalheira (e vai tudo
com a inicial maiúscula).
Mas
quem diz isso? É o Diabo, em versão do teatro de revista? Não. É
uma inteligência, uma cultura, um homem de bem e de fé. De mais a
mais, o dr. Alceu tinha acabado de beijar a mão de Sua Santidade.
Vinha de Roma, a eterna. E reduz a Igreja a uma vil e gigantesca
impostura. Mas se ele o diz, e tem razão, vamos, já, já, fechar a
Igreja e confiscar-lhe as pratas.
Cabe
então a pergunta: — 'O dr. Alceu pensa assim?'. Não. Em outra
época, foi um dos 'melhores'. Mas agora é preciso adular os
idiotas, conquistar-lhes o apoio numérico. Hoje, até o gênio se
finge imbecil. Nada de ser gênio, santo, herói ou simplesmente
homem de bem. Os idiotas não os toleram. E as freiras põem short,
maiô e posam para Manchete como se fossem do teatro rebolado. Por
outro lado, d. Hélder quer missa com reco-reco, tamborim, pandeiro e
cuíca. É a missa cômica e Jesus fazendo passista de Carlos
Machado. Tem mais: — o papa visitará a América Latina. Segundo os
jornais, teme-se que o papa seja agredido, assassinado, ultrajado
etc. etc. A imprensa dá a notícia com a maior naturalidade, sem
acrescentar ao fato um ponto de exclamação. São os idiotas, os
idiotas, os idiotas.
[19/8/1968]
”
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